segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sujeição ao mundo paralelo


O presente trabalho efetuado pelos alunos do 1º semestre do curso de Psicologia da Faculdade Castro Alves, refere-se a uma entrevista aplicada a um profissional de saúde, estabelecendo uma correlação entre a teoria e prática sobre a reforma psiquiátrica.

Em entrevista a um médico psiquiátrica, realizada em 15 de abril de 2010, na cidade de Salvador, sobre a reforma psiquiátrica, ele diz que há uma tendência na história da humanidade que diz respeito a livrar-se do peso do cuidado dos seres humanos mais incapacitados. Poucos cristãos se propõem a tão desgastante tarefa em troca de santidade ou afeto mútuo. A produção dos moradores de manicômio nasce daí, mas foi potencializada com o passar de décadas pelo sucateamento da assistência psiquiátrica pelas políticas públicas e pela incrível desassistência social e psicoeducativa às famílias. As taxas de pacientes psiquiátricos asilares poderiam ser bem menores se conseguíssemos uma melhor estimulação ocupacional de alguns pacientes e a viabilização de vinculações sociais saudáveis. Mas o papel do internamento psiquiátrico voluntário, involuntário ou compulsório para quadros agudos e crônicos ainda é vital para o bom exercício da Psiquiatria contemporânea, assim como o papel das UTIs, emergências clínicas, home care e asilos é essencial para a Geriatria contemporânea. Estamos falando de pessoas a terem cronicamente de serem cuidadas em diferentes intensidades e disponibilidade de cuidadores. A idéia de realizar uma reforma psiquiátrica no Brasil pelo lema: "Libertar os loucos do manicômio para a reintegração social", parte de uma premissa inadequada, não técnica (ideal e passional talvez) e ruma para um destino quixotesco, estéril. Como na Itália e no Rio Grande do Sul, por um longo interstício: fabrica moradores de rua e tragédias pessoais.

Há muita precariedade em se abrir CAPS (centros de atenção psicossocial), fechar manicômios e pedir que famílias carentes assumam o cuidado de pacientes psiquiátricos asilares. Muitos destes moradores nem têm mais para onde ir, e não se adaptarão à "liberdade desassistida" dos lares abrigados públicos. Leva tempo até uma prática técnica conseguir descentralizar a assistência psiquiátrica ideal do dueto "médico-doente". Colocam ideais em prática antes de termos resultados mais seguros de como efetuar essa prática com menor sofrimento, menos gastos e mais efetividade. Mas parece ser uma tendência na "máquina de desgastar gente" (Darcy Ribeiro) chamada Brasil que as coisas só se viabilizem no calor dos acontecimentos.

A Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/01) é um modelo teórico, novo e drástico que altera serviços estratégicos de saúde e, portanto mobiliza interesses econômicos e políticos de setores por vezes antagônicos da sociedade civil. Após seu nascimento, tal reforma tem cada vez mais desagradado aos profissionais de saúde mental, aos familiares e aos próprios pacientes.

O cumprimento da lei de informação ao Ministério Público, quando da internação involuntário, dentro do prazo de 72 horas está sendo cumprida, mas é uma medida indiscreta por violar em parte o âmbito do sigilo médico e imputar suspeita a atuação técnica dos psiquiatras. Também se revela como medida estéril, pois não há efetivo jurídico em quantidade e com capacidade técnica para realizar a fiscalização de todos os casos comunicados. Nem há rotinas de rondas do MP pelas clínicas psiquiátricas avaliando amostras de casos psiquiátricos internados para "diferenciar" o que é delírio persecutório dos surtos agudos e o que são relatos reais de arbitrariedades jurídicas.

A lei não fala em doença mental, e sim, transtorno mental. Utilizar o termo “transtorno” faz parte também do rigor técnico da medicina, mas apenas significa que o diagnóstico não pode ser feito através de exames com resultados precisos como no restante das doenças crônicas da medicina, mas pela observação clínica da expressão dos sintomas e alterações comportamentais. O estigma marca, mas não é o determinante principal da marginalização, os transtornos mentais também apresentam seqüelas cognitivas que também são incapacitantes em diferentes intensidades nos mais variados transtornos. Assim podemos contar com ocorrências variadas: esquizofrênicos juízes, ansiosos que precisam receber comida na boca e histéricas que não conseguem dirigir. Ninguém quer impedir os pacientes psiquiátricos de se tornarem cidadãos, mas nem sempre eles e boa parte da população brasileira conseguem exercer a plenitude da significação da palavra cidadania. Mas a maior parte das sociedades ocidentais e orientais não conseguirá de um momento para o outro reduzir sua racionalidade ou aumentar sua loucura para se tornarem lugares confortáveis a determinados níveis de transtorno mental.

A discussão da reforma psiquiátrica e suas propostas de mudança na abordagem dos padecimentos psiquiátricos têm acontecido em alguns centros universitários públicos de maneira lenta, mas bastante crítica. Como não existem grandes experiências sobre a teoria da reforma, não temos resultados confiáveis para adestrar os futuros profissionais de saúde mental no caminho mais efetivo para sua instituição.

Na visão do médico entrevistado, não existe o discurso do louco, existem pessoas que sofrem e pedem socorro. Os pacientes psiquiátricos não são formas de vida novas com linguagens próprias e que conquistarão seu espaço no mundo. O lugar do padecimento psiquiátrico é um lugar de reparação e cuidado, não de rotulação de pessoas. Só existe uma maneira de autonomia e auto-gestão a partir do contato com a realidade. A ruptura do juízo de realidade dos pacientes psiquiátricos mais acometidos não trará realidades novas para esta. Apenas existe uma realidade compartilhada por todos: “loucos” e “lúcidos”. Os delírios podem inspirar poetas, pinturas e partituras musicais, mas a perspectiva romântica do louco como um visionário fértil de novas idéias é supervalorizada pelo senso comum.

O paciente psiquiátrico com “alienação mental” (não é redundância) que passa ao ato criminal na Bahia imediatamente é transportado para uma camada de quase eterna reclusão de valor social inferior à camada dos “loucos inócuos” e à camada dos “bandidos sãos”. Nem os teóricos apaixonados da reforma psiquiátrica olham por eles. Entregues que permanecem à renovação recorrente de sua reclusão pelas mãos, pela vontade e pela influência de todas as pessoas que os temem: o juiz, o promotor, o defensor, a família e o psiquiatra forense.

Os agentes comunitários que pertencem a variados serviços, eminentemente aos PSF (programa de saúde da família) espalhados pelo Brasil são utilizados por alguns CAPS nessa interface da assistência médica que busca estimular e identificar a demanda passiva ou reprimida de padecimentos nas casas e ruas. E o programa prevê um treinamento específico para tais profissionais.

As mudanças visando uma reforma psiquiátrica já foram colocadas em prática pelos poderes públicos e é possível que engendre bons frutos, mas o imediatismo de suas mudanças tem sido desastroso para pacientes psiquiátricos e suas famílias. O papel do Ministério Público contra possíveis arbitrariedades dos psiquiatras nos internamentos involuntários parece se mostrar algo paranóide, inútil e ilusório.

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